terça-feira, fevereiro 01, 2011

Reportagem

Roêda e Panascal - a importância dos ‘terroirs’ no vinho do Porto

São sete e meia da manhã e encontramo-nos no Douro, bem junto à ponte do Pinhão, em pleno Cima Corgo. É cedo e o tempo está ameno. O sol já ilumina o rio, não chega a fazer frio, mas sente-se o ar matinal, fresco e límpido.

Um trajecto de menos de cinco minutos de carro separa-nos do nosso destino, a Quinta da Roêda, lugar de nascença dos vinhos da empresa Croft agora incluída no universo do ‘Grupo Fladgate’. No curto caminho, passamos por uma outra quinta, igualmente berço de um dos melhores vinhos do Porto, a atestar que o Vale do Pinhão é fértil em maravilhas vitivinícolas.

Fundada em 1588, disputando o pódio das mais antigas Casas Tradicionais de Portos, passariam três séculos até a Croft adquirir, em 1889, a propriedade da Quinta da Roêda. Curiosamente, o anterior proprietário era John Alexander Fladgate, o que em muito explica que o ‘Grupo Fladgate’ tudo tenha feito para, em 2001, voltar a adquirir os direitos sobre a quinta.

Em 1889, apesar das vinhas da quinta estarem ainda a recuperar do drama da filoxera, poucas dúvidas restavam já de que aquele se tratava de um terroir de eleição. A confirmação absoluta, o reconhecimento da crítica e a apoteose por parte dos consumidores, viriam um pouco mais tarde, com os vintages de 1927 e de 1931, e, pois claro, com o majestoso vintage 1945, ainda hoje um marco da Croft.

Não espanta, assim, que a história de mais de duzentos anos de produção de vinhos, e o impacto provocado pela beleza da curva que o Douro percorre neste local, nos dificultam a tarefa de recordar da razão desta nossa visita. Razão essa que é, afinal, assente numa dupla motivação. Por um lado, a de visitar o novo modelo de vinha concebido pela ‘Fladgate’ para as suas quintas – concretizado, com especial entusiasmo, na Quinta da Roêda –, e provar o ‘Fonseca Terra Prima’, o primeiro vinho do Porto produzido a partir de uvas de agricultura biológica. Por outro lado, visitar sensorialmente as amostras dos vinhos produzidos na colheita de 2008 – todos Portos posto que, como é sabido, a empresa não produz DOC – pelas várias quintas detidas pela ‘Fladgate’. A particularidade é que se tratam de amostras antes ainda de qualquer blend, ou seja, verdadeiras pérolas ‘single-quintas’ pois, só desta forma, poderíamos tirar teimas sobre a importância do terroir nestes tintos fortificados.

Percorremos, então, os patamares da Quinta da Roêda, parte deles reconstruídos recorrendo-se a uma inovadora tecnologia laser que procede ao cálculo exacto da melhor inclinação longitudinal do terreno. Acompanha-nos David Guimaraens e António Magalhães, responsáveis, respectivamente, pela enologia e pela viticultura da ‘Fladgate’, ambos entusiasmados com os resultados já conseguidos. Melhor escoamento das águas pluviais, diminuição da erosão, e até o mais fácil acesso dos meios mecânicos que realizam tarefas agrícolas, são tudo vantagens, dizem-nos.

Afastamo-nos da casa da quinta, de inevitável estilo colonial inglês, e não conseguimos deixar de depositar o nosso olhar para as entrelinhas e para os taludes cobertos de vegetação, de erva bem cortada, indícios claros que o futuro deste terroir aponta para a agricultura biológica na procura da conservação de um ecossistema equilibrado. Defronte de uma das encostas da quinta, com patamares de uma linha apenas, António Magalhães interrompe o nosso passo e diz-nos com orgulho que naquele pedaço de solo não foi utilizada uma única gota de herbicida de acção residual, e que o sucesso da reconversão se deve à cobertura verde e aos inerentes infestantes naturais.

Pouco depois, a prova de fogo. Encontramo-nos já com o Fonseca Terra Prima em mãos: garrafa estreita e leve (denotando mais preocupações ambientais), tons esverdeados no rótulo, e com a certificação de que provém de uma vinha cultivada totalmente de forma orgânica na Quinta do Panascal. Fazemos chegar o copo ao nariz, primeiro. Depois à boca. É um Porto, sim senhor, e dos bons! Tem fruta negra, ligeiro vegetal seco, e grande tónica floral. Saboroso, parece-nos que a fruta tem contornos mais puros e equilibrados do que é habitual, mas, claro está, na ausência de comparação com outros Portos de agricultura biológica, podemos estar a ser traídos pela componente sugestiva.

Gostámos deste Porto, e não apenas sabendo-o produzido a partir de uvas sem pesticidas nem herbicidas. Ao invés, julgamos ser uma das melhores opções para quem pretende beber um ruby (da categoria Porto Reserva), intenso e leve, frutado e balanceado, volumoso sem ser duro, enfim um Porto de elegante prazer. Prova superada! David Guimaraens, também ele visivelmente agradado com mais este seu rebento, faz-nos notar os cuidados extremos na sua produção, sendo disso bom exemplo a aguardente que o fortificou, ela própria produzida a partir de uvas de agricultura biológica.

Já mais tarde, perto do meio-dia, espera-nos nova tarefa, desta feita na Quinta do Panascal – a de provar as amostras, colheita de 2008, de Portos das quintas de Vargellas, da Terra-Feita, da Roêda, do Cruzeiro, de S. António, do Junco, e do próprio Panascal. O desafio é conhecermos a extensão das diferenças que o terroir de cada território duriense proporciona. Para a comparação ser a mais fiel possível, a aguardente em todos os Portos é a mesma. É sabido que o enólogo, assim como o ‘master blender’ no whisky, assume um relevo determinante na hora de lotear o vinho. Mais do que uma profissão, é uma autêntica arte a de procurar harmonias, criando referências olfactivas e gustativas constantes mesmo entre anos e colheitas diferentes. Mas até que ponto nos Portos, tal como nos DOC, o terroir assume papel principal?

Pois bem, a prova aos vários Portos permitiu-nos concluir que as diferenças entre os diversos vinhos são muito significativas. Existe, é certo, uma qualidade persistente e transversal nos vários Portos que provámos – o que revela o óptimo trabalho da ‘Fladgate’ e, igualmente, que 2008 foi um ano bom no Douro –, mas, em rigor, nem todos os vinhos estavam, a nosso ver, totalmente afinados. Apenas dois, apesar de díspares no estilo, nos pareceram próximos da perfeição. Apenas dois, dos sete provados, nos recordaram, com enorme deleite, outras provas de outros vinhos excepcionais. Apenas dois vinhos, e talvez mais um, nos parecerem ser matéria para vintage de primeiríssima linha.

Já adivinhou? É que, sem sabermos, estávamos a provar os ‘single-quintas’ das quintas do Panascal e de Vargellas! Eram esses os dois ‘single-quintas’ que nos emocionavam e que nos remeteram para provas passadas, para experiências já vividas, enfim para a noção de terroir. Mas o mais incrível estava ainda para vir: o primeiro ‘single-quinta’ recordava-nos um Fonseca vintage, e o segundo era muito próximo do estilo vintage Taylor’s. Se dúvidas tínhamos a propósito da influência do terroir nos vinhos do Porto, elas tinham sido definitivamente desfeitas. Efectivamente, uma vez que o Fonseca vintage é produzido maioritariamente a partir de uvas da Quinta do Panascal, a prova do vinho desta quinta remeteu-nos, de imediato, para essa referência dos vintages nacionais. O mesmo sucedeu com o Porto da Quinta das Vargellas que tudo nos fez para o associarmos, intuitivamente, aos maravilhosos vintages da Taylor’s. O outro Porto que nos encantou foi o vinho da Quinta da Roêda, normalmente engarrafado sem recurso a uvas de outras quintas, e que não largamos por alguns momentos graças ao seu vicioso carácter especiado.

Naturalmente, também os Portos das restantes quintas revelaram-se em óptimo nível, e certamente poderão vir a proporcionar ‘single-quintas’ de qualidade assinalável e de expectável longevidade. Na prova comparada, porém, a diferença entre os vários perfis foi notória: uns mais frescos – caso do aprimorado e fino Quinta do S. António – outros mais potentes – como os grandiosos Quintas do Junco e Quinta da Terra-Feita –, outros ainda de pendor químico – como o da Quinta do Cruzeiro, repleto de tinta da china e de aromas a vegetal seco.

No entender da ‘Fladgate’, e com excepções – caso, por exemplo, da Quinta da Terra-Feita em anos não declarados –, os vinhos das referidas quintas são particularmente interessantes enquanto ingrediente secreto – o ‘sal’ e a ‘pimenta’ como actualmente se gosta de referir – dos seus vintages, abdicando-se deles quando se pretende constituir a respectiva espinha dorsal. Na verdade, para servirem de «corpo-matriz», para servirem de menir vinícola ao vintages que suportarão dezenas de anos em garrafa, estão reservados os melhores néctares da Quinta do Panascal, vinhos doces e com fruta negra belíssima, e da Quinta da Vargellas, vinhos de taninos firmes e de longevidade garantida.


Para quem ainda tem dúvidas sobre a importância dos terroirs nos vinhos do Portos, faça como nós: prove os vintages da Fonseca e da Taylor’s, e fique com a certeza que os vinhos que lhe estão na base são de quintas diferentes, com clima e solos dispares, mas que, no fundo, distam entre si apenas o caminho que separa a Quinta do Panascal no Cima Corgo à Quinta de Vargellas no Douro Superior.

1 comentário:

Raul Carvalho disse...

Gostei de uma frase que colocaste aqui: "Os vinhos têm diferenças significativas, mas todos eles t`^em imensa qualidade"...

Exactamente. Cada vez mais provo Portos bons e que têm bastante diferença, uns mais frescos, outros mais quentes e por aí em diante...

Mas penso eu, que a qualidade dos Vintage, em particular, está a aumentar na generalidade. Como vemos nos ultimos 2 anos...

Abraço
Vinho - Um ritmo de vida